sexta-feira, 28 de março de 2008

José Emílio Pacheco

Indesejável



Não me deixa passar o guarda.
Ultrapassei o limite de idade.
Provenho de um país que já não existe.
Os meus papéis não estão em ordem.
Falta-me um carimbo.
Preciso de outra assinatura.
Não falo a língua.
Não tenho conta no banco.
Reprovei no exame de admissão.
Extinguiram o meu posto na fábrica imensa.
Desempregaram-me hoje e para sempre.
Não tenho nenhuma cunha.
Levo aqui deste mundo vasto tempo.
E os nossos amos dizem que já é hora
de me calar e de me fundir com o lixo.



(versão minha)

quarta-feira, 26 de março de 2008

Bill Knott

Poema



Queridos rapazes e raparigas,
não se esqueçam por favor
de sublinhar as minhas palavras
depois de as apagarem.



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Na encruzilhada



O vento traz uma folha de papel até aos meus pés.

Apanho-a.

Não é uma petição para a minha morte.



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Errado


Quero ser mal interpretado;
isto é,
interpretado a partir da tua perspectiva.



****



O que eu disse



O humor foi banido do céu das hienas.



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Poema putativo da época samurai



ele escreveu um haiku
antes da sua lâmina cortar a minha cabeça
por que não um tanka
um tanka permitir-me-ia viver
por mais catorze sílabas.



(versões minhas)

domingo, 23 de março de 2008

Javier Salvago

Retrato


Fala pouco, e a muito poucos
se atreve a chamar amigos,
passa ao largo se há confusão,
não visita os seus vizinhos,

atravessa a rua fumando,
sempre dentro de si mesmo,
vendo o mundo de fora
como quem lê um livro

preso - sem saída -
no seu próprio labirinto,
no entanto nem surdo nem cego
nem indiferente nem frio:

um solitário que vive
com uma mulher e um miúdo.



(versão minha)

sábado, 22 de março de 2008

Javier Salvago

Convém não esquecer



Por este atalho,
a que chamam vida, todos
vamos às apalpadelas

tal como um cego.
Em cinza terminam
todos os fogos.



****



Haiku



Como as nuvens de agosto, tudo passa.
A vida prova-nos
que se pode viver sem quase tudo.



(versões minhas)

sexta-feira, 21 de março de 2008

Javier Salvago

A juventude



Durou o que duram,
por norma, as ilusões:
até que descobres
que já acordaste.

Hoje é só história
para constituir memória.

Outros são os seus donos
e outro é aquele que olha
e procura o que de novo
oferece a vida.

Quem veio por tudo
não se satisfaz com tão pouco.


(versão minha)

quinta-feira, 20 de março de 2008

Javier Salvago

Quinta-feira Santa



A mesma lua, o mesmo
perfume de laranjeira
perfumando as ruas,
onde a vida estala

na multidão de corpos
que se atraem e procuram.
Calor de primavera
na pele e no ar.

Jovens incansáveis,
como nós então,
percorrem a cidade
bêbedos de desejo

- jovens com invernos
de abstinência, que sentem,
como Aquele, que também
o seu reino não é deste mundo -.

Os tambores recordam
que se avança para o patíbulo.
Diante de virgens chorosas,
descaradamente, beijam-se

deuses que morrerão
- como o deus que ontem fomos -,
sem remédio nem culpa,
na cruz dos anos.



(in Los mejores años, 1991; versão minha)

quarta-feira, 19 de março de 2008

Adam Zagajewski

Não permitas que o momento de lucidez se dissolva



Não permitas que o momento de lucidez se dissolva
Deixa que o pensamento radiante dure em sossego
embora a página esteja quase concluída e a chama vacile
Ainda não ascendemos ao nível que nos é devido
A sabedoria cresce lentamente como um dente do siso
A estatura de um homem continua a ser talhada
sobre uma porta branca

Vinda da distância, a voz feliz de uma trompete
e de uma canção surge inesperadamente como um gato
O que acontece não cai no vazio
O fogueiro continua a alimentar a fornalha com carvão
Não permitas que o momento de lucidez se dissolva
Tens de gravar a verdade
numa substância seca e dura



(versão minha a partir da tradução para inglês de Renata Gorczynski)

terça-feira, 18 de março de 2008

Juan Gelman

O jogo em que andamos



Se me dessem a escolher, escolheria
esta saúde de saber que estamos doentes,
esta felicidade de andarmos tão infelizes.
Se me dessem a escolher, escolheria
esta inocência de não ser um inocente,
esta pureza em que passo por impuro.
Se me dessem a escolher, escolheria
este amor com que odeio,
esta esperança que come pães desesperados.
Aqui acontece, senhores,
que jogo com a morte.



(versão minha)

sábado, 15 de março de 2008

Richard Aronowitz

Anatomia de um mentiroso



Deslizar debaixo deste céu infinito,
cavalgar a rede das minhas artérias,
percorrer os caminhos do meu pecado.
Poderia contar-te histórias sobre

a atracção, tubos capilares e por aí fora,
tecer grandes narrativas a partir dos ramos dos meus brônquios,
guiar-te pelos quatro cantos dos meus olhos.
Poderia conceber mil papeis diferentes,

enganar-te com a contagem das minhas borbulhas
só para confirmar que de facto ainda estou vivo.
Talvez componha algo simples para ti,
tão fácil como admitir uma mentira.

Agora, retrocedendo lentamente a partir de cem,
abre-me como se fosse uma rosa. Rejeita
o meu coração e deixa os meus pulmões inchados,
eles enganam-te a toda a hora. Não aceites

que a minha língua ou a garganta te desviem.
Terás que me cortar em carne viva,
até às pontas dos dedos por um verso que seja verdadeiro.
O resto é apenas entretenimento, um logro feito carne.



(versão minha; in Anvil new poets, Anvil, London, 2001, p. 18)

terça-feira, 11 de março de 2008

Tony Harrison

Longa distância II


Apesar da minha mãe já ter morrido há dois anos
o meu pai continua a colocar as suas pantufas junto do aquecedor,
põe botijas de água quente no seu lado vazio da cama
e continua a ir renovar-lhe o passe social.

Não podíamos aparecer de repente. Tínhamos de telefonar.
Durante uma hora mantinha-nos à distância para ter tempo
de esconder as coisas dela e parecer um homem só
como se o seu amor puro e silencioso fosse um crime.

Ele não podia expor-se à minha má influência de descrente
embora estivesse certo de que em breve iria ouvir a chave dela
a ranger na fechadura enferrujada e a encerrar o sofrimento dele.
Sabia que ela tinha saído precipitadamente para arranjar chá.

Eu creio que a vida termina com a morte, e é tudo.
Não fomos juntos às compras; tanto faz,
na minha agenda preta de cabedal aparece o teu nome
e o número que já ninguém atende e para o qual continuo a ligar.



(versão minha)

segunda-feira, 10 de março de 2008

Ferran Fernández

Mandamento


Ama-me sobre todas as coisas

por exemplo

sobre a carpete
sobre a mesa
sobre a areia da praia



(versão minha)

quinta-feira, 6 de março de 2008

Peter Cherches

Levanta o teu braço direito


Levanta o teu braço direito, disse ela.
Levantei o meu braço direito.
Levanta o teu braço esquerdo, disse ela.
Levantei o meu braço esquerdo. Os meus dois braços estavam levantados.
Baixa o teu braço direito, disse ela.
Baixei-o.
Baixa o teu braço esquerdo, disse ela.
Fi-lo.
Levanta o teu braço direito, disse ela.
Obedeci.
Baixa o teu braço direito.
Assim fiz.
Levanta o teu braço esquerdo.
Levantei-o.
Baixa o teu braço esquerdo.
Assim fiz.
Silêncio. Ali fiquei, os dois braços em baixo, esperando pela sua próxima ordem. Passado um bocado fiquei impaciente e disse, e agora.
Agora é a tua vez de dar as ordens, disse ela.
Está bem, disse eu. Diz-me para levantar o meu braço direito.
(versão minha)