domingo, 31 de agosto de 2014

Roberto Fernández Retamar

Aqui



Aqui viveu Brecht.
Aqui está a máscara do mal
Sobre a qual fez aquele poema.
Aqui está o aquecedor que lhe deu calor.
Aqui estão os livros de Lenine intensamente anotados.
E os livros proíbidos.
Aqui está a mesa onde escrevia
E a partir da qual olhava o cemitério
Em que iria ser enterrado.
Aqui está a pintura chinesa do homem que duvida
Coroando o seu quarto de dormir.
Aqui recebia os amigos.
Aqui pensava.
Aqui discutia.
Aqui sorria.
Aqui projectava coisas melhores.
Aqui algures
Está a mensagem que me deixou
E que eu procuro e volto a procurar sem encontrar.
Ou talvez já a tenha recebido.
Aqui viveu Brecht.



(Versão minha; Juegos de Manos - Antología de la poesía hispanoamericana de mitad del siglo XX; organização de Ángel Esteban e Ana Gallego Cuiñas, Visor, Madrid, 2008, p. 709).

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Tracy K. Smith

A vida boa



Quando algumas pessoas falam de dinheiro
Fazem-no como se este fosse um amante misterioso
Que saiu para comprar leite e nunca mais
Voltou, e isso torna-me nostálgica
Daqueles anos em que vivi de pão e café,
Sempre esfomeada, indo para o trabalho em dia de receber
Como uma mulher que vai à procura de água
A partir de uma aldeia sem poço, vivendo então
Uma ou duas noites como toda a gente
De frango assado e vinho tinto.



(Versão minha; original aqui).

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Roberto Fernández Retamar

Direito e dever de escrever sobre tudo



Absurda a ideia de que só podes escrever sobre o que te aconteceu
(O pouco, o ínfimo que aconteceu a esse corpo, a essa vida medida nas suas datas),
Como se tudo não te tivesse acontecido, como se
Houvesse uma tarde que não tivesse nascido para ti,
Como se todos os impérios, batidos pelos ventos dos desertos, devorados pelas selvas,
Não tivessem conduzido a ti,
Como se o mais longínquo astro, extraviado até ao limite do universo,
E também os astros que hoje já não existem,
E as nebulosas pensativas,
Não tivessem trabalhado, sabendo-o ou sem o saberem,
Para ti, para este instante, para este poema
Que se escreve graças ao alento exalado por Miranda ou Xenofonte
Com restos que sobraram de Cassiopeia.



(versão minha; original incluído em Juegos de Manos (Antología de la poesía hispanoamericana de mitad del siglo XX); organização de Ángel Esteban e Ana Gallego Cuiñas, Visor, Madrid, 2008, p. 702)